segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Foi a saudade que me trouxe pelo braço




Recife é um lugar onde me sinto bem. Parece que tem uma coisa humana, um jeito, não sei, uma boa vontade. Pela terceira vez, sempre a trabalho, me deparei com gente tranquila, cuidadosa, carinhosa, bem disposta. É muito subjetivo, não sei de estatísticas humanas, mas sempre vou embora com vontade de ficar mais um pouquinho, mais pelas pessoas do que por qualquer atrativo turístico, se bem que a praia de Carneiros é uma das praias mais lindas que pisei (mas ai não é Recife).

Desta vez, perguntamos a um amigo local onde seria bom comer. Ele, sem duvidar, disse: Ah, naquele lugar que fica numa favela desfavelizada onde uma moça faz o melhor arroz de polvo do mundo. Me interessei imediatamente. No dia seguinte embarcamos num taxi, e de google maps na mão saímos à caça do Bar do Cabo.

Logo ali, do lado de Boa Viagem e do Pina, por detrás de estranhíssimos prédios futuristas lembrando o World Trade Center, aparece a tal favela desfavelizada, Brasilia Teimosa. Na verdade uma área de construções em palafitas que foi aterrada e reurbanizada dando origem a este bairro cujo nome já diz tudo. O taxista era uma pessoa muito simpática mas muito difícil. Ele simplesmente não ouvia. Eu dizia vire aqui, ele seguia reto. Uma hora parou no Kioske do Cabo (fechado, com um coqueiro triste e desbotado na fachada, um bêbado dormindo na porta e uma poça de esgoto) e quase nos mandou descer. Expliquei que não era ali e nos embrenhamos nas ruazinhas estreitas e caóticas do miolo do bairro. Dé péssimo humor, quando viu onde tinha se metido (ruas sem saída, outras onde era impossível avançar, com caminhões obstruindo a passagem) quase arrumou uma briga com caminhoneiro e nos convidou a descer onde, segundo o google traiçoeiro, estava a rua do restaurante.





Eu não conseguia entender onde era o restaurante, uns mandavam ir pra lá, outros pra cá. E nossa inadequação era tamanha, forasteiras de oculinhos descolados e mochila com lap top, deslocadas. Nos achei tão patéticas, por um momento. Mas ninguém fez menção da nossa presença e andamos, passando por casas de porta aberta, gente dormindo no meio da rua, um cachorro mutante sem pelo no corpo, crianças peladas e pilhas de lixo até chegar de novo na beira do mar, com direito a pescadores e carros em alta velocidade. Alí encontramos Iris e tudo mudou.

Iris, na verdade Irismaia, é uma senhora baixinha e bonita que nos levou pelo braço até o bar, cumprimentando todos no caminho, dizendo "já volto aqui", "oi dona maria" e cantando sem parar uma música sobre descansar numa rede, com uma afinação invejável. De repente um destino sombrio se desfez e a Brasilia Teimosa nos apareceu colorida, viva, convidativa. Tudo continuava alí, o lixo, o esgoto, a falta, mas Iris nos oferecia generosamente outro viés, como que tornando evidente a precariedade dos nossos corações.

O famoso Bar do Cabo, um botequinho muito simples, três mesas ocupadas. Pedimos o clássico da casa e uma cerveja. O garçom simpático de sorriso amplo nos trouxe copos de caldo de peixe de entrada (e de brinde).



A aparência era sim um pouco estranha. Um fundo de carne de peixe desfiada que confundi com siri, um líquido alaranjado e meio centímetro de óleo. Mas o sabor! Com limão espremido e uma gota de pimenta, um verdadeiro levanta defunto, riquíssimo. Depois de uma noite muito mal dormida, com calor-frio, mosquitos e saudades, senti que finalmente tinha acordado para o mundo dos vivos. Acompanhado de uma cerveja muito gelada e uma dose (também de brinde) de cachaça licorosa de tão gelada, com uma fatia de limão ao lado.

E então veio a estrela, o arroz de polvo. A caminho do banheiro (precário, ao lado da cozinha, sem luz nem descarga), passei pela cozinheira Natalia, outra criatura feita a base de amor, e vi como acrescentava o arroz ao refogado (cebola, cenoura, batata, coentro, tudo cortado bem pequeno), seguido de leite de côco.




Delicioso, cremoso, apimentado na medida, sal na medida, suave. O polvo macio, desmanchava na boca. Entendi quando o outro freguês me disse "agora você chegou em Recife, aqui o peixe vem direto do mar, não passa na mão de mais ninguém". Realmente nunca comi um polvo tão fresco e macio.

Endereço indispensável pra quem gosta de comer, de ser bem tratado, exemplo de como a excelência na cozinha nada tem a ver com o luxo, o estilo ou a decoração, tem a ver com gostar, com amar. Bar do Cabo, Brasilia Teimosa, encontre se puder!

2 comentários:

Juliana Kehl disse...

que fome que deu...adorei.

Anônimo disse...

ahhhh! q delícia nat! amei o relato e a dica…sonhando com esse arroz de polvo! Convidaremos vcs pra vir aqui almoçar ou jantar com calma… Provar nossas estranhas (yet delicious) novas comidas saudáveis… Bjão