domingo, 24 de novembro de 2013

Premio Paladar


 sossegue coração

ainda não é agora
       a confusão prossegue
sonhos a fora

 calma calma
logo mais a gente goza
       perto do osso
a carne é mais gostosa

(Paulo Leminski)




O assado de tira é assim, carne-osso-carne-osso, tem um sabor acentuado, que atiça o paladar com uma luxuriosa gordura entremeada. Gostoso, pecaminoso. E como todo Eros tem seu Thanatos, pesado, eventualmente enjoativo. Paraiso dos cães, a equação parece ser: largura do corte, tempo de grelha, quantidade de sal.

Na Blitz do Churrasco de que participei, para avaliar este corte dentro do Premio Paladar 2013, ficou claro que essa conta nem sempre fecha.




Adendo. A primeira vez que peguei ônibus sozinha, aos 9 anos, foi pra ir no açougue. Na lista, assado de tira, que o açougueiro serrou na minha frente, na largura solicitada. O som da serra, a precisão da tira, a galocha branca, coisas que me faziam querer ser açougueira (também gostava da precisão do corte do bifinho, todas as fatias exatamente iguais, com aquela faca de cabo branco de gume fino e gasto). Bom, até ai, também quis ser cabeleireira, para poder mexer num cabelo de homem que não fosse o do meu irmão (que me cobrava uma taxa), cantora lírica (que só cantaria Carmen de Bizet), e astronauta (depois mudei para astrônoma, para não precisar ir pro espaço e poder casar com Carl Sagan).




Voltando à tira: um ser humano não pode se alimentar exclusivamente disso, como percebi depois de sete restaurantes. Acontece que overdose de tira produz: ligeira tristeza, boca franzida, olhos baços, sonolência, descrença no amanhã e fortes tendências vegetarianas.

Mas o experimento é válido. Segue a minha avaliação das tiras paulistanas que provei.

Bassi
Excelente. Um grande diferencial: foi o único lugar que serviu o corte mais largo, portanto mais suculento. Muito bem feito, ponto perfeito, sal na medida e um chiminchurri parceiro que quase inverteu os fatores e transformou a tira em mero suporte.







Martin Fierro
Este restaurante é um clássico, e sou um tipo de freguesa sentimental que passa a defendê-lo como se fosse seu. Assumo que meu juízo de valor esbarra numa espécie de nepotismo patrício. E a tira nem é minha conterrânea! É uruguaia, e bem fina. O ponto estava muito bom, e o sal idem. A tristeza foi prová-la na quarta degustação do dia, a alegria é saber que já a provei em muitas ocasiões. Sempre aprovada.

Varanda Grill
Boa, fina, talvez um pouco gordurosa demais? Ficou essa dúvida, mas de modo geral agradou. O ambiente é que não ajudou. Nenhuma janela, iluminação estranha, luz baixa alaranjada. Talvez eu esteja precisando de óculos.

Pobre Juan
Não há de ser o forte da casa, apesar do nome argentino. A tira passou do ponto, ou "perdeu a freada" como disse o Leo Coutinho, e tinha muita gordura. Ambiente agradável que vale pelas batatas infladas e churros com doce de leite. No banheiro, um cheiro agradável de eucalipto que me lembrou sauna e casa de praia.

Rodeio
Aqui onde deveríamos comer picanha com farofa, vinagrete e arroz biro biro, comemos tira fora de hora, com o restaurante já quase fechado. No good. Seca, salgada, sem graça. Salva pela batata do acompanhamento e pelo garçom que descreveu seu preparo. Um erro engraçado (trocar creme de leite por leite condensado numa descrição de molho para batata), uma auto-correção, uma risada geral e saimos sorrindo.

Ruibayat
Neste lugar jantei uma noite há muito tempo com o dono de uma gravadora do tipo das que apareceram na década de 90 como alternativa ao mainstream. Essas que não se sustentaram por usar um modelo de negócios falido para tentar criar novos mercados. Isso me fez pensar, na época, que poderia ser o tipo de lugar onde alguém te leva para se exibir. Mas este personagem, depois de assistir um show, pagou um jantar para minha banda (meninos falidos e famintos), pediu champagne e brindou ao meu sucesso. Lembro que comi uma picanha muito boa naquela noite. Poucos dias depois encontro este homem em outro lugar e ele finge que não me conhece. Decepções dos meus vinte anos, que logo o tempo transformou em experiência. E decepção foi também a tira do Ruibayat, a mais cara de todas, que não vale quanto pesa. Seca e salgada demais.

North Grill
Muito sal, visível a olho nú, não agradou. E ainda tinha uma goteira que pingava no meu pratinho do couvert (sabiamente dispensado). Dei uma espiada na grelha e acho que vi o churrasqueiro jogando algum líquido na carne… já torci o nariz, muito suspeito. Já soube de lugares onde se pincela a carne com óleo. Espero que não seja o caso. Nem comentei a artimanha pros meus parceiros, por não ter certeza e para não afetar seu juízo.

Conclusão, tira não é pra ser muita, nem todo dia, e nem sempre fica boa. Não é uma matéria prima que facilite um resultado regular, estável. E é o tipo de pecado que deve ser homeopático, diluido em um cardápio com outras opções mais magras. Mesmo assim, costumava ser uma das minhas carnes favoritas, como pode? Hoje estou mais para cogumelo portobelo.




Saiba mais sobre a Blitz do Churrasco e o Premio Paladar 2013

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Foi a saudade que me trouxe pelo braço




Recife é um lugar onde me sinto bem. Parece que tem uma coisa humana, um jeito, não sei, uma boa vontade. Pela terceira vez, sempre a trabalho, me deparei com gente tranquila, cuidadosa, carinhosa, bem disposta. É muito subjetivo, não sei de estatísticas humanas, mas sempre vou embora com vontade de ficar mais um pouquinho, mais pelas pessoas do que por qualquer atrativo turístico, se bem que a praia de Carneiros é uma das praias mais lindas que pisei (mas ai não é Recife).

Desta vez, perguntamos a um amigo local onde seria bom comer. Ele, sem duvidar, disse: Ah, naquele lugar que fica numa favela desfavelizada onde uma moça faz o melhor arroz de polvo do mundo. Me interessei imediatamente. No dia seguinte embarcamos num taxi, e de google maps na mão saímos à caça do Bar do Cabo.

Logo ali, do lado de Boa Viagem e do Pina, por detrás de estranhíssimos prédios futuristas lembrando o World Trade Center, aparece a tal favela desfavelizada, Brasilia Teimosa. Na verdade uma área de construções em palafitas que foi aterrada e reurbanizada dando origem a este bairro cujo nome já diz tudo. O taxista era uma pessoa muito simpática mas muito difícil. Ele simplesmente não ouvia. Eu dizia vire aqui, ele seguia reto. Uma hora parou no Kioske do Cabo (fechado, com um coqueiro triste e desbotado na fachada, um bêbado dormindo na porta e uma poça de esgoto) e quase nos mandou descer. Expliquei que não era ali e nos embrenhamos nas ruazinhas estreitas e caóticas do miolo do bairro. Dé péssimo humor, quando viu onde tinha se metido (ruas sem saída, outras onde era impossível avançar, com caminhões obstruindo a passagem) quase arrumou uma briga com caminhoneiro e nos convidou a descer onde, segundo o google traiçoeiro, estava a rua do restaurante.





Eu não conseguia entender onde era o restaurante, uns mandavam ir pra lá, outros pra cá. E nossa inadequação era tamanha, forasteiras de oculinhos descolados e mochila com lap top, deslocadas. Nos achei tão patéticas, por um momento. Mas ninguém fez menção da nossa presença e andamos, passando por casas de porta aberta, gente dormindo no meio da rua, um cachorro mutante sem pelo no corpo, crianças peladas e pilhas de lixo até chegar de novo na beira do mar, com direito a pescadores e carros em alta velocidade. Alí encontramos Iris e tudo mudou.

Iris, na verdade Irismaia, é uma senhora baixinha e bonita que nos levou pelo braço até o bar, cumprimentando todos no caminho, dizendo "já volto aqui", "oi dona maria" e cantando sem parar uma música sobre descansar numa rede, com uma afinação invejável. De repente um destino sombrio se desfez e a Brasilia Teimosa nos apareceu colorida, viva, convidativa. Tudo continuava alí, o lixo, o esgoto, a falta, mas Iris nos oferecia generosamente outro viés, como que tornando evidente a precariedade dos nossos corações.

O famoso Bar do Cabo, um botequinho muito simples, três mesas ocupadas. Pedimos o clássico da casa e uma cerveja. O garçom simpático de sorriso amplo nos trouxe copos de caldo de peixe de entrada (e de brinde).



A aparência era sim um pouco estranha. Um fundo de carne de peixe desfiada que confundi com siri, um líquido alaranjado e meio centímetro de óleo. Mas o sabor! Com limão espremido e uma gota de pimenta, um verdadeiro levanta defunto, riquíssimo. Depois de uma noite muito mal dormida, com calor-frio, mosquitos e saudades, senti que finalmente tinha acordado para o mundo dos vivos. Acompanhado de uma cerveja muito gelada e uma dose (também de brinde) de cachaça licorosa de tão gelada, com uma fatia de limão ao lado.

E então veio a estrela, o arroz de polvo. A caminho do banheiro (precário, ao lado da cozinha, sem luz nem descarga), passei pela cozinheira Natalia, outra criatura feita a base de amor, e vi como acrescentava o arroz ao refogado (cebola, cenoura, batata, coentro, tudo cortado bem pequeno), seguido de leite de côco.




Delicioso, cremoso, apimentado na medida, sal na medida, suave. O polvo macio, desmanchava na boca. Entendi quando o outro freguês me disse "agora você chegou em Recife, aqui o peixe vem direto do mar, não passa na mão de mais ninguém". Realmente nunca comi um polvo tão fresco e macio.

Endereço indispensável pra quem gosta de comer, de ser bem tratado, exemplo de como a excelência na cozinha nada tem a ver com o luxo, o estilo ou a decoração, tem a ver com gostar, com amar. Bar do Cabo, Brasilia Teimosa, encontre se puder!